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quarta-feira, 21 de março de 2012
Entrevista sociólogo polonês Zygmunt Bauman - Tema: Sociedade do Consumo
"Sociedade do consumo e do crédito não funciona mais"
Ideias do Milênio
Entrevista concedida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman ao jornalista Sílio Boccanera, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:
Quando as ruas de Londres e outras cidades inglesas assistiram no ano passado a explosões violentas de saques e incêndios, um detalhe chamou a atenção de sociólogos e outros analistas: o movimento não tinha slogans políticos, não articulava exigência, nem apresentava protestos. Teóricos tentam explicar a explosão, responsabilizando desde a ausência de estrutura familiar à pobreza, desemprego, falta de educação formal e de perspectiva, sobretudo para os jovens.
O sociólogo Zygmunt Bauman, polonês radicado na Inglaterra, tem sua própria versão. Ele viu nos distúrbios ingleses a expressão radical da sociedade de consumo em que as pessoas buscam sua identidade não naquilo que são, mas naquilo que consomem e exibem como se dissessem: “Eu sou o que o que eu compro”. Esse fenômeno faz parte da fluidez na sociedade de consumo onde não se valoriza o permanente, mas o temporário; onde predomina o que Bauman chama de modernidade líquida na medida em que nada é sólido ou conserva a forma por muito tempo. Tudo em mudança, vive-se inconstância, o que provoca insegurança e medo. Bauman é prolixo na produção de artigos, conferências e livros. Suas obras correm o mundo, inclusive o Brasil onde ele tem uma dúzia de livros publicados e bem vendidos. Bauman recebeu o Milênio em sua casa em Leeds, norte da Inglaterra.
Silio Boccanera — Mal saímos da crise financeira de 2008 e o mundo parece estar entrando em outra. As pessoas estão achando que será tão ruim quanto. O que isso está fazendo com as pessoas, com a sociedade?
Zygmunt Bauman — Não sei se estamos entrando em outra depressão. Na minha opinião, nós não saímos da depressão iniciada dois ou três anos atrás. Ainda temos prognósticos muito ruins, em especial se perguntarmos sobre a situação das pessoas, e não a situação de Bolsas de Valores, bancos ou governos. As pessoas comuns estão vivendo com muita ansiedade e medo ininterruptamente, pois, na maioria dos países, com poucas exceções, há desemprego de longo prazo que não para de aumentar. Os últimos 30 anos têm sido assim: os jovens pegavam a condição em que foram criados como ponto de partida e iam além. Eles avançavam para além do que os pais fizeram. Agora, eles descobrem, chocados, que terão sorte se mantiverem o que os pais conseguiram.
Silio Boccanera — Isso cria uma sociedade diferente, não?
Zygmunt Bauman — Sim. Nós nos acostumamos, no período de economia neoliberal, da economia Reagan-Thatcher, a ideia de que podíamos viver com empréstimos. Com o passar do tempo, era cada vez mais fácil pagar nossas dívidas. O preço dos imóveis subia infinitamente, e todos os bancos e administradoras de cartões de crédito insistiam para que nós tivéssemos cartões e fizéssemos empréstimos. Eles mesmos se habituaram a viver e a lucrar dos juros pagos pelos empréstimos. Uma pessoa sem empréstimos, sem dívidas, é inútil para o banco, não dá lucro.
Silio Boccanera — É uma sociedade do crédito.
Zygmunt Bauman — Exato.
Silio Boccanera — Sociedade do consumo e do crédito.
Zygmunt Bauman — Isso. Esse crescimento econômico dos últimos 20, 30 anos, deveu-se inteiramente ao uso de dinheiro que não estava em nossas mãos. “Aproveite agora e pague depois.” A filosofia era essa. Há 30 anos, trocamos o cartel das cadernetas de poupança pelo dos cartões de crédito, que é exatamente o oposto. E chegou a hora de encarar as consequências disso. Os imensos valores pagos aos bancos para se recapitalizarem, pelos governos, terão que ser pago por nossos filhos e netos. Nós hipotecamos o futuro. Não para nossa geração, mas para as gerações futuras.
Silio Boccanera — No meio de 2011, houve rebeliões na Inglaterra. O senhor estava no país na época. Imagino que não estivesse surpreso de ver que os principais alvos eram as lojas. Os jovens pegavam tênis, camisas de marca. Eles não pareciam nem ter uma motivação política. Eles queriam consumir. O senhor também vê assim?
Zygmunt Bauman — Muito do que aconteceu era esperado, na verdade. As regiões de Londres onde os conflitos ocorreram tinham taxa de desemprego três vezes maior que a média. Há muitas pessoas desempregadas, em especial, jovens, que não têm nada para fazer, morrem de tédio, sem perspectivas de emprego. Imagine-se nessa condição. No meio do seu bairro, há um shopping center todo iluminado, um supermercado, convidando todos que têm direito de entrar lá. Oficialmente, não há necessidade de um visto para entrar nesses lugares, mas os guardas ficam de olho nas pessoas que andam por ali à toa, que não prometem ser clientes, e fazem o possível para não deixá-las entrar. A mensagem da sociedade de consumo foi enviada a todos nós, não apenas para algumas pessoas. O homem mediano comum atual vê, em um dia, mais comerciais do que as pessoas viam durante toda vida cem anos atrás. Eles são inundados por tentações...
Silio Boccanera — Quer possam comprar ou não.
Zygmunt Bauman — Exato. Todo mundo recebe a mesma mensagem. Algumas pessoas podem fazer algo quanto a isso. Lembre que as pessoas que se rebelaram em Londres roubaram coisas, mas também as queimaram. Foi um ato de vingança contra as fortalezas do consumo onde eles não podem entrar. Roubar foi uma coisa, mas não era apenas pegar os objetos que os motivava. Eles queriam se vingar da humilhação de serem consumidores desqualificados em uma sociedade de consumo.
Silio Boccanera — Que pontos em comum — se é que há algum — o senhor vê entre esses movimentos, protestos que ocorreram em Londres, e as ações que têm acontecido em várias capitais européias, na maior parte das vezes lideradas por jovens?
Zygmunt Bauman — Não, é diferente. Em Londres, até agora, houve uma rebelião ligada unicamente ao consumo. Foi um protesto de consumidores imperfeitos contra o consumismo. Não tinha a intenção de acabar com o consumismo, mas de participar da orgia consumista, pelo menos por três noites. É como um parque de diversões, um intervalo daquela realidade escura e sombria. Foi um fenômeno muito peculiar. Você mencionou um fenômeno realmente de massa, muito interessante, que também mostra uma mudança muito importante na nossa sociedade. Houve rebeliões nos subúrbios de toda França, em um dado momento. Há o movimento dos “indignados”, em Madri. Em Atenas, há rebeliões contra os cortes nas despesas e os ataques aos direitos sociais da população impostos pela falência do país. Em Israel, a classe média está saindo às ruas, protestando contra o governo, que emprega todo o dinheiro em gastos militares e não liga para o bem-estar da população. Há os países árabes, que passaram pelo mesmo tipo de movimento. As pessoas saem às ruas, vão a praça pública e se recusam a sair enquanto esses regimes não lhes concederem direitos de cidadania, derrubando o governo e dando espaço para algum tipo de sistema diferente. Que tipo? Não sei. Mas, quando era jovem, a principal pergunta que eu e meus contemporâneos faziam era: “O que deve ser feito? O que devia ser feito? O que fazer para melhorar a sociedade?” Hoje, a principal pergunta não é mais essa. As pessoas, no geral, estão ampla ou vagamente com medo ou ansiosas, mas não tem um modelo de uma sociedade perfeita.
Silio Boccanera — Não há utopia.
Zygmunt Bauman — Isso. Portanto, a principal pergunta hoje não é: “O que fazer?” As pessoas não chegam nem a pensar no que deve ser feito, porque, para chegar a essa pergunta, elas têm que passar por outra pergunta, que é mais difícil de responder: “Quem vai fazê-lo?” Minha hipótese é a de que a verdadeira causa da importância dessa pergunta é o que chamo de divórcio entre o poder e a política. O poder é a capacidade de fazer coisas. E a política é a capacidade de decidir que coisas devem ser feitas. O poder e a política, até 50 anos atrás, eram óbvios para todos. Tanto o poder quanto a política estavam nas mãos do governo. E, se decidíssemos — eu, você e o resto — o que precisava ser feito, aquilo era feito. O Estado tinha a autoridade de decidir e o poder de agir. Mas isso não é mais assim, pois há um divórcio entre o poder e a política, mesmo em países em desenvolvimento e prósperos, como é o Brasil de hoje, por exemplo. É preciso levar em conta a situação mundo afora. Muitos aspectos da nossa vida, que decidem quanto a nossas perspectivas, nossa capacidade de fazer as coisas, nossa possibilidade de melhorar nossas vidas, estão fora do alcance de qualquer instituição política existente.
Silio Boccanera — Eu queria ligar o começo da nossa conversa com o que o senhor acaba de escrever. Temos uma crise financeira, sucessivos programas de austeridade, que tentam equilibrar as finanças. E temos a sociedade de consumo. Com austeridade, será muito difícil dar continuidade aos princípios da sociedade de consumo e, assim, haverá mais frustração, não é?
Zygmunt Bauman — A austeridade foi imposta, e talvez seja uma necessidade. Qual é a alternativa, imprimir mais dinheiro? Isso criaria inflação como nas décadas de 20 e 30. A austeridade é uma necessidade, mas não é a cura. Se há cortes e uma política de austeridade — e há —, a riqueza nacional não será produzida. Quando não se produz riqueza nacional, a depressão aumenta. Isso não é uma cura. Nós podemos, talvez, mitigar parcialmente nossos problemas financeiros, mas isso não significará que o desemprego não irá crescer e o padrão de vida das pessoas não cairá. Portanto, em termos sociais, não em termos financeiros, e pressão irá aumentar.
Silio Boccanera — Nós ainda lidamos com a pressão, como o senhor mencionou, da grande quantidade de comerciais, que querem que compremos novos produtos, que compremos um modelo A, B, C, novos e melhorados, como eles dizem.
Zygmunt Bauman — Sim, mas a ideia do consumismo, do consumo como uma panaceia para todos os problemas, uma fórmula para uma vida boa, bem-sucedida, feliz e próspera é algo muito novo, que surgiu no final do século XIX. Ela é, de certo modo, um acidente histórico. Parece que nós estamos diante de uma escolha muito desastrosa. A escolha terá que ser feita, com disposição, consciência e conhecimento, ou tudo será imposto a nós, porque não haverá outras soluções para o problema. Recentemente, eu comecei a chamar a presente situação de “situação de interregno”. O interregno é um conceito bem antigo, da época de Tito Lívio, um historiador da Roma Antiga, que escreveu a história de Roma em “Ab Urbe Condita”, “desde a fundação da cidade”. O primeiro interregno ocorreu quando o primeiro rei da Roma Antiga, Rômulo, após 38 anos de reinado, morreu. Não está muito claro, pois alguns dizem que ele foi direto para o Paraíso, que ele não morreu. Mas ele desapareceu, após 38 anos. A expectativa de vida naquela época era de 38 anos, o que significa que, no momento em que ele morreu, praticamente não havia ninguém que se lembrasse de como era a vida antes de Rômulo. Em toda parte, todas as prescrições e proscrições vinham de uma só fonte: Rômulo. E, de repente, ele desaparece. Imagine-se nessa situação. O que fazer? Não se sabe o que fazer, de verdade.
Silio Boccanera — Há um período entre reis.
Zygmunt Bauman — Foi algo especialmente dramático. Não foi a mudança rotineira de um rei para o outro, mas o desaparecimento da única fonte de autoridade. Até que o rei seguinte, Numa, fosse indicado, passou-se mais de um ano. E foi um ano de confusão completa. As pessoas se sentiam abandonadas, não sabiam o que fazer, não havia ordem do dia. No momento, nós estamos em um interregno. Um interregno que significa, simplesmente, que a antiga maneira de agir não funciona mais, e novos modos de agir ainda não foram inventados. Esse é o interregno. E é por isso que não quero dar previsões sobre o futuro, pois ele pode tender para qualquer direção.
Silio Boccanera — Essa nova geração tem sido extensivamente exposta, como conversamos antes, a ideia da falta de privacidade, de que a vida das pessoas é exposta, os segredos são expostos, o culto às celebridades está em toda parte. As pessoas chegam até a impor sua intimidade aos outros. Esse é um fenômeno novo.
Zygmunt Bauman — Elas impõem, mas a prática da exposição pública, do “striptease espiritual público”, podemos dizer, já foi internalizada, não é mais imposta. Crianças de oito, 10 anos, passam várias horas por dia na frente do laptop contando tudo sobre elas mesmas a quem quiser ler ou ouvir.
Silio Boccanera — E mesmo para que não quer.
Zygmunt Bauman — Exato. Nem todos podem ser vistos na TV. Se alguém for visto na TV é porque, realmente, é importante. Mas, se não for, pelo menos há a possibilidade de ser visto na tela do computador. Talvez alguém, por acidente, passeie pelo website, pelo blog.
Silio Boccanera — Ou pelo seu Facebook.
Zygmunt Bauman — E escreva, mande um recado. Assim ela se sente realmente membro do mundo, não foi deixada para trás, não foi excluída. Nós estamos dentro com a ajuda da internet, da realidade virtual. Quando desconectados, a vida é cada vez mais deserta, porque a oferta da socialização, da convivência, da união, da amizade, foi assumida pela implementação da internet, por ofertas online. Portanto, essa é outra grande mudança. Mais uma vez, é cedo demais para analisar isso e para fazer alguma previsão certa e confiável sobre o que acontecerá. Acrescente-se a isso a comercialização da moral humana. Nós já nos convertemos ao consumismo obsessivo-compulsivo. Temos que trabalhar duro, já que a fronteira entre a hora do trabalho e a do lazer, do escritório e da família, foi apagada. Assim, as pessoas esquecem seu dever moral para com o filho, a filha, a mulher...
Silio Boccanera — A pessoa está sempre conectada.
Zygmunt Bauman — Ela não pode dedicar tempo a eles e o que faz? Compra presentes caros para compensar a sua ausência. Quanto mais caro o presente, mais profundos devem ser sua responsabilidade moral e seu amor. Juntando tudo isso, vemos sinais de mudanças culturais muito intensas. Eu acho que estamos passando por uma profunda revolução cultural. Mas não me sinto realmente capaz, com conhecimento suficiente para arriscar em um prognóstico sobre que direção isso irá tomar. Como você acertadamente disse, há muitas pressões contraditórias. Por um lado, austeridade; por outro, consumismo. Como conciliar os dois?
Fonte:Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2012
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